terça-feira, 20 de maio de 2008

Dos apitos e cartões para TV

Renato Marsiglia: o ex-árbitro, hoje comentarista, fala sobre carreira, nível de arbitragem, profissionalização e recursos eletrônicos - "Existe o jogo do campo e o da TV"




O gaúcho Renato Marsiglia foi árbitro de basquete e futebol, economista e analista de sistemas, mas depois que abandonou a arbitragem se formou em Jornalismo e decidiu se dedicar exclusivamente ao esporte. Sem achar que a instituição deve ser julgada pelo caso Edilson, Marsiglia hoje é um comentarista de opiniões fortes. Acredita que deveria haver um filtro para seleção de profissionais de arbitragem. Em 1994 viveu seu melhor momento nos EUA. Poderia ter emplacado três árbitros brasileiros nas últimas quatro finais de Copa do Mundo. Caso o Brasil não tivesse sido tetra: "Ficou bom assim. O esporte me abriu muitas portas." Confira a entrevista exclusiva com o colunista de ON.

O Nacional - Você começou com árbitro de basquete. Como foi isso?
Renato Marsiglia - Fui jogador de basquete do Grêmio Náutico União, no fim da década de 1960. Quando eu entrei na universidade acabei parando em função dos horários. Fui convidado a apitar jogos e acabou dando certo. Cheguei a ser árbitro internacional da FIBA [Federação Internacional de Basquete], apitei várias decisões de Brasileiros, Sulamericanos e inclusive a final dos Jogos Panamericanos de Porto Rico em 1979, entre Estados Unidos e Cuba. Naquela época a Guerra Fria era muito forte e o ginásio estava lotado. Aquele foi um marco, mas não houve qualquer tipo de pressão sobre a arbitragem.
Naquele Pan conheci o José Roberto Wright, que era árbitro do Brasil de futebol. Ficamos amigos. Ele vinha apitar jogos em Porto Alegre e se hospedava na minha casa, como naquela famosa semifinal entre Inter e Palmeiras em 1979. Ele me convenceu a fazer o curso de árbitro de futebol me dizendo: 'Quanto você ganhou para apitar a final do Pan?' 'O equivalente a US$ 50.' 'Para apitar aquela semifinal do Brasileiro eu ganhei 60 vezes mais que você. E te chamam de ladrão igual...' Em 1980 fiz o curso de árbitro de futebol. Em 1981 ainda apitei basquete e futebol ao mesmo tempo. Aí não deu mais para conciliar porque são esportes com características diferentes. Por exemplo, no basquete não tem a lei da vantagem. A falta é importante. No futebol uma das marcações mais bonitas é uma lei da vantagem bem aplicada. Acabei optando pelo futebol e desenvolvendo a carreira.

ON - Qual o jogo mais marcante da carreira nos dois esportes?
RM - No basquete evidentemente a final do Panamericano entre Cuba e Estados Unidos e no futebol sem dúvida nenhuma os dois jogos que apitei na Copa do Mundo de 1994 nos EUA: Bélgica 1 x 0 Holanda na fase de grupos e depois nas oitavas-de-final Suécia 3 x 1 Arábia Saudita.

ON - Acredita que teria apitado mais jogos caso o Brasil não tivesse avançado?
RM - Nunca divulguei isso, mas quando parei recebi uma carta pessoal do João Havelange (na época presidente da FIFA) agradecendo os serviços prestados e informando que teria sido árbitro da final pelas minhas boas atuações, a Comissão de Arbitragem já havia me selecionado, caso o Brasil não tivesse chegado.

ON - Que árbitros você destacaria positiva e negativamente na carreira?
RM - Negativo eu vou passar batido, mas o José Roberto Wright [apitou nas Copa de 1990 na Itália e 1994 nos EUA], sou suspeito, é meu amigo pessoal, Romualdo Arpi Filho [árbitro da final da Copa de 1986 no México, Argentina 3 x 2 Alemanha], um árbitro extraordinário e em nível internacional o Juan Carlos Loustau, da Argentina [apitou a final do Mundial Interclubes de 1992, São Paulo 2 x 1 Barcelona], um árbitro de primeira linha.

ON - E entre os jogadores?
RM - Entre aqueles que apitei o Marco Van Basten [atacante, técnico da Holanda], para mim foi o maior centroavante do mundo. Na Copa de 1994 não foi, estava machucado, mas naquele time jogava o Rijkaard [volante, ex-técnico do Barcelona] um jogador extraordinário. Romário, fantástico, apitei muitos jogos dele quando atuava no Vasco. Além do Zico, claro, espetacular.

ON - Como era lidar com essas "feras" em campo?
RM - O Romário era o mais fácil de lidar. Não falava, não incomodava, não causava problema, não discutia com adversário. Apitar jogo com 22 Romários seria tarefa para qualquer criança. Além de ser um jogador extraordinário.

ON - Faça uma avaliação do nível da arbitragem brasileira hoje.
RM - A redução da idade de 50 para 45 anos criou um vácuo, porque muitos árbitros de bom nível tiveram que abandonar repentinamente. E aí você tem que refazer todo um trabalho e isso não leva menos que 7 ou 8 anos para formar. Só vai dar resultados depois que for um árbitro nacional e começa a disputar vagas na FIFA. Então é um período de maturação longo onde muitos ficam pelo caminho. Então você não tem muita quantidade para tirar qualidade. Ainda acho que a arbitragem brasileira, como em qualquer atividade, é melhor preparada hoje que antigamente. O grande problema de agora é a concorrência desleal com os recursos eletrônicos, especialmente a televisão. Os erros de arbitragem hoje são extremamente potencializados pelo recurso da TV. Fico orgulhoso quando dizem: 'no teu tempo não acontecia isso...' Mas também não tinha tudo o que tem hoje. Se tivesse, talvez meus erros aparecessem em um número maior. Então as pessoas têm que entender que hoje a televisão não existe para crucificar o árbitro. Ela existe para jornalisticamente mostrar o certo e o errado. Existe um jogo do campo e o jogo da TV. Já aconteceu comigo de sair do estádio e pensar que o árbitro havia ido bem. Depois ligava a televisão e os lances mostravam o contrário. Então você tem o congelamento de imagem, o slow motion, o quadro parado, o tira-teima, 24 câmeras, além da visão de cima para baixo. O árbitro dentro de campo só tem os olhos, está correndo, cansado, estressado e pressionado pela TV. O jogo do campo é o esporte e o jogo da televisão é o business. Tem de haver um cuidado da parte dos comentaristas de falar aquilo que é um erro por uma deficiência técnica. Quando você precisa ver na televisão um lance várias vezes para saber se o árbitro cometeu um erro, o que houve foi uma limitação do ser humano. Isso é comprovado cientificamente.

ON - Sobre a profissionalização e o uso de recursos eletrônicos no futebol.
RM - Na medida em que se tem um árbitro melhor preparado técnica, física e psicologicamente, que se dedique integralmente é evidente que ele vai errar menos. Hoje o árbitro tem a semana inteira de atividades para no sábado e domingo apitar e correr contra rapazes de 20 anos que treinam com estrutura profissional, enquanto que a estrutura do árbitro é toda amadora.
Quanto aos eletrônicos não sou muito favorável. Não que não fosse bom poder usar é que o difícil seria você operacionalizar sem tirar a naturalidade do esporte. O nosso futebol, diferente do americano, é um jogo que quanto mais fluir melhor. O americano ao contrário. Quantas vezes a gente vê na televisão seis pessoas numa mesa redonda sem chegar a conclusão sobre um lance. Então você tem que dar as melhores condições possíveis de humanamente o árbitro errar o mínimo.

ON - Porque o jogo no Brasil e na Europa, no Brasileiro e na Libertadores, é tão diferente?
RM - Vai muito da forma não só do árbitro, mas principalmente da maneira como os jogadores encaram profissionalmente o esporte, e acima de tudo da estrutura de disciplina. As punições na Europa são muito mais duras que aqui. Então o jogador não faz porque sabe que lá não há impunidade. Isso é uma cultura também do país. E o futebol é uma conseqüência disso.

ON - Que árbitros da nova geração você destacaria?
RM - O Evandro Roman do Paraná que entrou na FIFA esse ano é um bom árbitro. Tem uma formação pessoal muito boa. É Doutor em Preparação Física pela Unicamp e professor universitário. Se mantiver o foco e o rumo vai longe.

ON - Como deve ser a relação entre árbitro e jogador?
RM - É muito de temperamento. Acho que independente de ser mais ou menos prolixo dentro de campo o árbitro não pode abrir mão da disciplina, tem que ser enérgico sem ser mal-educado. Ele tem que usar o poder de árbitro que a regra lhe confere, mas não confundir com arbitrariedade. Aquele que conduz o jogo com autoridade e personalidade é o bom árbitro.

ON - O que acha dos árbitros e jogadores que seguem o jornalismo?
RM - Não vejo problema. Se tiverem a oferecer em termos de qualidade e experiência para o enriquecimento das transmissões ótimo. Há necessidade de conhecimento do que vai falar e de ética jornalística, ou seja, uma bagagem pessoal para exercer a atividade. Além de uma pessoa articulada, que saiba transmitir informações de qualidade.

(Foto: Arquivo Pessoal)
Legenda: Com João Havelange, presidente da FIFA, na Copa de 1994

Um comentário:

  1. Existe o jogo do campo e o jogo da tv. E existem os times do eixo e os time fora do eixo.

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