segunda-feira, 18 de maio de 2009

Uma cidade bola murcha

Futebol: como Passo Fundo, famosa no século passado por amedrontar fortes times do Rio Grande do Sul, chegou ao fundo do poço no futebol. ON fez um relato dos acontecimentos, para que o leitor tire conclusões e avalie se o esporte tem jeito

(Foto: Ana Luisa do Nascimento/ON)

A Passo Fundo da década de 1950 contava com aproximadamente 80 mil habitantes - representando cerca de um terço da população da capital, Porto Alegre. A cidade vivia o auge da expansão econômica, com lavouras de trigo ocupando até mesmo a zona urbana, e social, quando a Universidade de Passo Fundo começava a ser idealizada. No futebol, cinco times disputavam o Campeonato Citadino, a principal competição da cidade: Gaúcho, 14 de Julho, Riograndense, Independente e Atlético, todos amadores. Os títulos invariavelmente ficavam entre os dois grandes de Passo Fundo: o alviverde do Boqueirão e o alvirrubro da Baixada.

Era uma época em que estrada que liga Passo Fundo a Erechim aguardava pavimentação e a rivalidade entre os vizinhos era grande, especialmente nos torneios regionais contra Veterano e Glória, de Carazinho, e Ypiranga e Atlântico, de Erechim. Havia jogos quase todos os finais de semana nos principais campos da cidade e os jornais davam ampla cobertura das partidas, com matérias e fichas completas das equipes. O fato de os times daquele tempo adotarem um regime amador diminuía os gastos e ajudava a manter o departamento de futebol ativo, com times competitivos formados por atletas descobertos nos colégios, nas fábricas e nas fileiras do Exército.

Conforme o escritor Marco Antônio Damian, autor de vários livros sobre o esporte da cidade - entre eles Futebol de Passo Fundo: contribuição a sua história -, em 1952, a Federação Gaúcha (à época Riograndense) buscava tirar os clubes do amadorismo para formar uma primeira divisão estadual de profissionais. Na cidade, o 14 de Julho foi o primeiro a tomar a iniciativa. Vendo o arquirrival dominar as competições que disputava, o Gaúcho sentiu que também precisava se profissionalizar. Porém, o regime ficou apenas no nome: a estrutura seguia amadora. Apesar disso, a década de 1950 preparou Passo Fundo para o auge do futebol das duas décadas seguintes, quando os dois grandes da cidade eram temidos por todo o estado. Lendas e craques nasceram e cresceram por estes gramados.

Entretanto, hoje, isso tudo hoje faz parte do passado. Passo Fundo, atualmente com cerca de 180 mil habitantes - o estado tem 10 milhões -, tem um dos maiores centros médicos e educacionais do Rio Grande do Sul, é a Capital Nacional da Literatura, mas no futebol, não há sequer um clube à altura de sua tradição esportiva para contar a história...

O exemplo da "profissionalização" dos clubes locais, citado por Damian no parágrafo anterior, dá uma ideia de como o modelo não foi implementado desde a origem. "Falta profissionalismo com projeto, planejamento e seriedade", define. E complementa: "Passo Fundo vive hoje uma crise em todos os esportes." A falta de uma equipe profissional em qualquer esporte coletivo e a presença apenas de atletas individuais, como a maratonista Rosa Jussara, o tenista Marcos Daniel e o piloto Cláudio Ricci (exceção aos irmãos do vôlei, Gustavo e Murilo Endres), todos buscando os próprios recursos, atesta a afirmação. Um dos motivos que pode ter contribuído com o quadro foi a sucessão de acontecimentos, de natureza interna e externa, que fez com que o empresariado local fosse perdendo, aos poucos, o interesse em investir no esporte passo-fundense. Mas não foi só isso.


Uma fusão frustrada

Tudo começa com a fusão malsucedida entre 14 de Julho e Gaúcho. A ideia que vinha de dirigentes ligados ao alviverde, na teoria, parecia boa, mas acabou desfeita logo após a concretização por conselheiros do próprio clube periquito. Ainda, segundo Damian, na época (em 1986), o governo municipal, do prefeito Fernando Carrion, comprometeu-se a colaborar com o recém-criado Esporte Clube Passo Fundo. O recurso destinado, porém, acabou tendo que ser devolvido depois de uma ação do Ministério Público. Mesmo assim, o novo clube ainda viveria dias de glória com o sexto lugar liderado por Cláudio Freitas no Gauchão de 1989. Hoje, com o departamento de futebol fechado, sequer o Estadual da base vai disputar.

Quadro desolador

O quadro se agrava ainda mais quando é feita uma análise geral do futebol na cidade. O Sport Club Gaúcho, "o mais querido da cidade", está praticamente extinto, com o seu maior patrimônio, o estádio Wolmar Salton, tombado pelo patrimônio histórico municipal, mas completamente destruído pela ação do tempo, após ter ido à leilão em decorrência das imensas dívidas financeiras do clube, que não pratica futebol desde o Gauchão de 2007, quando caiu para a Segunda Divisão.

O Passo Fundo, que incorporou o patrimônio do 14 de Julho, manteve o Vermelhão da Serra após esse ter tido quase o mesmo fim que o Wolmar Salton, hoje é comandado por uma comissão diretiva provisória depois que os vice-presidentes eleitos pediram dispensa com menos de 30 dias de cargo. No futebol, um péssimo desempenho na Série B e uma frustrante eliminação na Copa RS em 2008 fecharam o departamento de futebol. Desde a profissionalização, este será o primeiro ano em que pelo menos um dos grandes da cidade não participa de competição estadual.

Até o amador vai mal

Restaria o futebol da várzea. Mas o campeonato está paralisado há quase dois meses, depois que a Secretaria de Desporto e Cultura cancelou o contrato com a empresa de arbitragem, por terem sido comprovadas irregularidades. A previsão era de que os jogos da competição do ano passado fossem retomados neste final de semana. Mas o Vermelhão da Serra, que a partir de agora será locado pela prefeitura para jogos da Primeira Divisão, deixando o Delmar Sittone para a Segundona, não pode ser ocupado a pedido da diretoria do Passo Fundo, pois o gramado está sendo recuperado após as chuvas do mês.

Segundo José Felipi Benvegnú, ex-presidente e membro da comissão diretiva provisória do clube, a locação do campo deve render no mínimo R$ 6 mil mensais para um jogo no sábado e dois no domingo, o que cobriria os custos de manutenção do gramado, mas o valor final ainda não foi acertado bem como o contrato de locação não foi assinado. Assim a retomada da competição ficou para o próximo final de semana.

Na opinião de Marco Antônio Damian, o modelo de futebol amador atualmente praticado é ultrapassado. "O primeiro passo seria organizar a competição de modo a trazer de volta o público. Outro passo seria divulgar melhor o campeonato." Enquanto isso os torneios de clubes sociais crescem. Caixeiral Campestre e Clube Juvenil têm campeonatos de verão de inverno, patrocinados, com mais de cinco categorias, cada um deles com, em média, dez equipes, todas devidamente apoiadas.

Vizinhos dão goleada

Nesse meio tempo, nosso antigo rival, o Ypiranga, foi eliminado nas quartas-de-final do primeiro turno do Gauchão deste ano após ter terminado a fase de grupos empatado em número de pontos com o Grêmio. O time de Erechim, cidade com 97 mil habitantes, foi campeão da Série B no ano passado, após uma grande reformulação no clube, que passou a ser administrado pelo Instituto Anglicano Barão do Rio Branco. O clube hoje tem um projeto de sócios, venda de produtos com a marca do time, planos de mídia para o estádio e apoio da comunidade. Ainda, quase ao nosso lado, o Atlético de Carazinho, de 60 mil habitantes, resultado da fusão de Glória e Veterano, após 13 anos afastado, confirmou presença na Segunda Divisão desta temporada. O que dizer então de cidades como Veranópolis, 25 mil habitantes, e um time que nessa sexta-feira disputava uma vaga para a final do Gauchão?

Futuros ameaçados

O fardo da realidade ainda se torna mais pesado para quem está na linha de frente do ocaso da cidade com o futebol: os jovens jogadores. A região é comprovadamente um grande celeiro de atletas. A combinação de ascendência europeia com o futebol brasileiro produz jovens quase prontos para os grandes clubes. Qualquer passo-fundense lembra com facilidade de Bebeto, o Canhão da Serra, de Kita, campeão brasileiro com o Flamengo, de Felipe, duas vezes artilheiro do Gauchão, e, mais recentemente, Marquinhos, goleador do último Brasileiro sub-20 pelo Inter, só para citar os mais famosos. E qual a semelhança entre eles? Todos despontaram para o futebol vestindo as camisas de 14 (Passo Fundo) e Gaúcho.


Jovens zagueiros do grupo profissional do Passo Fundo no segundo semestre do ano passado, Marcelo (18 anos) e Marcão (17) apenas correm ao redor de gramado do Vermelhão da Serra. Marcelo era o homem da sobra na trinca que tinha Sidnei e Baggio. Marcão era o reserva imediato. O plantel precário fez com que tivessem espaço para mostrar futebol. Porém agora sequer plantel eles têm para disputar posição. Marcelo arrumou um emprego meio turno e Marcão é o único a ocupar os alojamentos do estádio. O seu último companheiro foi Marciano, goleiro dos juvenis no ano passado. Com ele também acabaram saindo o atacante Dingo, o zagueiro Caiçara e o meia Cereta.


Ambos fizeram parte do grupo que disputou a Copa Lupi Martins. "A gente fica um pouco frustrado por não estar jogando, mas tenho a palavra da diretoria que pretende arrumar algum time para eu jogar ainda este ano", lamenta Marcelo. Marcão, que saiu de São Paulo, também mostra decepção. "Fico um pouco chateado porque a gente estava com um grupo bom, entrosado, que queria muito disputar", diz. Sua rotina tem sido: "Pela manhã corro um pouco e à tarde faço ginástica. Mas, claro, preferia estar jogando". Dingo (19) agora depende do pai que busca um time para ele jogar. "No clube disseram que buscariam um time da segunda divisão para eu jogar, mas até agora nada." Quando recebeu a notícia que o clube não disputaria o Estadual de juniores, Dingo percebeu a atual situação do futebol em Passo Fundo: "Falaram que não teriam dinheiro para me pagar, eu disse que não precisa receber, só queria um time para jogar...", contou. Por enquanto, ele mantém a forma correndo.

Segundo o ex-presidente e membro da comissão diretiva provisória, José Felipi Benvegnú, uma reunião na última sexta-feira definiria os rumos desses garotos.

O que nos resta no futebol

O que antes era ponto turístico agora é motivo de tristeza. Visitar os estádios dos principais times de Passo Fundo gera um misto de melancolia e pena. Imaginar que por ali já foram realizados grandes jogos que emocionaram milhares de passo-fundenses começa a ficar difícil de explicar para os mais novatos.

As cerca de 60 crianças, dos oito aos 13 anos, que fazem parte da escolinha do Passo Fundo podem não vislumbrar que o Vermelhão da Serra é um dos maiores do interior do estado e em um passado não tão recente reuniu mais de 18 mil torcedores em um jogo. Apesar de "aparentemente" estar a salvo de um novo leilão e o clube livre de maiores dívidas, não há "futebol" no estádio.

Pior é o caso dos meninos da escolinha do Gaúcho, comandada pelo ex-goleiro do clube, Carlos Alberto. Com recursos próprios, o professor comanda os treinos no campo do estádio Fredolino Chimango, em frente ao antigo quartel, ou seja, alguns dos jovens aspirantes jamais pisaram no famoso gramado, hoje tomado pelo mato, do estádio Wolmar Salton. Outros sequer ouviram falar no Canhão da Serra.


Para os garotos das idades citadas acima, inclusive, não há o que reclamar. O Vila Nova é grande expoente no futebol de campo e todos os anos manda dez jovens promessas para a dupla Gre-Nal. Invariavelmente elas acabam ficando e mais tarde fica-se sabendo que tais jogadores são da cidade ou da região. A Academia Bola 10 surge com um projeto profissional e um investimento surpreendente para as categorias de base. No momento está sendo montada uma equipe para disputa do Estadual de Juvenis - será o único representante da cidade na competição.

Falando em promessas das categorias de base, o garoto Marquinhos, última joia revelada em nossos gramados, renovou contrato com o Internacional este ano após um belo desempenho no Brasileiro sub-20, quando foi o artilheiro, e na Taça São Paulo de Juniores, mesmo aos 18 anos. As informações dão conta que o jogador teria uma multa rescisória para o exterior de R$ 40 milhões. O Inter tem 50% dos direitos federativos de Marquinhos, o empresário Fernando Otto tem 10% e o Passo Fundo 40% dos direitos econômicos. Uma negociação do garoto para o exterior poderia fazer renascer o clube. Mas as informações pelos lados do Vermelhão da Serra são, como sempre, de economia interna. Esse poderia ser um dos motivos do descrédito da comunidade com o clube, que era para ser "de todos nós..."


E lembrando o jornalista Meirelles Duarte, como assumidamente lhe desagrada, resta-nos cobrir o futebol da distante Porto Alegre, ou quem sabe dos "vizinhos"...


Decadência em quatro atos (anos)

Esporte Clube Passo Fundo

2006: nem Felipe salvou
Depois de uma campanha modesta na primeira fase do Gauchão e escapar da degola na última rodada da Copa RS em 2005, o Passo Fundo queria novos rumos. Contudo, nada mudou. Mesmo com uma equipe qualificada, liderada por Ferreira e Felipe, o tricolor, a exemplo de 1994, acabou rebaixado. O foco no Vermelhão da Serra passou a ser as categorias de base, com a participação nos estaduais Juvenil e Júnior.

2007: só Marquinhos
Naquele ano, pela primeira vez em toda a história, o Passo Fundo deixava de disputar o Campeonato Gaúcho, na primeira ou segunda divisões, fechando o departamento profissional de futebol. A alegação mais uma vez foi a crise financeira e a falta de apoio da comunidade. Menos mal que no Estadual das categorias de base, os juvenis revelaram o meia Marquinhos, hoje nos profissionais do Internacional.

2008: retorno apagado
Um recomeço tímido, com um grupo bastante inexperiente, sob o comando do ex-zagueiro Ancheta, fez o Tricolor cair logo na primeira fase da Segundona, ficando atrás dos inexpressivos TAC e Panambi. Após o fiasco, Celso Freitas foi incumbido de preparar uma equipe para subir no próximo ano. O teste seria a Copa RS. Mas a eliminação nas oitavas-de-final por 6 a 0 para o Riograndense-SM - após ter vencido em casa por 4 a 0 - fez o projeto ruir. Fora de campo, o Vermelhão da Serra quase teve o mesmo destino que o estádio do rival.

2009: diretoria dissolvida
Pela segunda vez com o departamento profissional de futebol fechado, a esperança da nova diretoria era disputar o Estadual de Juniores a fim de dar experiência aos jovens do clube, visando a uma nova participação na Segundona em 2010. Porém, após a renúncia dos dois vice-presidentes antes mesmo de completar 30 dias no cargo, o conselho deliberativo dissolveu a diretoria, montou uma comissão diretiva provisória e marcou novas eleições para 45 dias. Foi marcada uma reunião para o dia 18 de março, que leva o título de Cartas na mesa, com a presença de contadores e advogados do clube, que cancelou a participação no Gauchão Júnior.


Sport Club Gaúcho

2006: campanha de sobrevivência
Depois de subir no ano anterior com um vice-campeonato na Segunda Divisão, o Gaúcho terminou a primeira fase do Estadual apenas na frente do rival Passo Fundo, que, depois, na Copa RS, acabou rebaixado naquele ano. Faziam parte da equipe o zagueiro Jonas, que foi para o futebol francês, e o lateral-direito João Paulo, negociado com o Atlético-MG. Também disputou o Estadual de Juniores.

2007: vexame em campo e fora dele
Sob o comando do técnico Armando Rebechi, a equipe fez a pior campanha do Gauchão e acabou rebaixada. O resultado mais emblemático foi a goleada por 7 a 1 para o Veranópolis. Fora do campo, o patrimônio foi arrematado em leilão, por meio de créditos, por R$ 1,110 milhão, resultado de uma ação movida em 1996, depois que um menino se afogou na piscina do clube e ficou tetraplégico.

2008: nada para comemorar
Completando 90 anos de história, o Gaúcho não tinha nada para comemorar. Sem seu maior patrimônio, o estádio Wolmar Salton, o clube tinha apenas o passado que vale relembrar. As notícias agora não eram mais sobre futebol. Na sede do clube, abandono e destruição. O município conseguiu o tombamento histórico do campo e das arquibancadas, mas a sede social foi ao chão com a ação do tempo e de vândalos.

2009: fio de esperança
Uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado favoreceu o Sport Club Gaúcho no recurso de revisão do cálculo da dívida que o clube tem com o menino que sofreu o acidente nas piscinas. O resultado será anexado ao processo de anulação do leilão do estádio Wolmar Salton, que, segundo a advogada Patricia Alovisi, que trabalha de forma voluntária para o clube, deve ser julgado este ano.


(Fotos: Arquivo ON)


Reportagem publicada na edição de O Nacional dos dias 28 de fevereiro e 1º de março de 2009

3 comentários:

  1. nao esta assim o campo do passo fundo!!!!! seus viados!!!!!

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  2. logo acima está a data de publicação da reportagem. espero que não esteja mais assim mesmo. obrigado pelo comentário.

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  3. logo acima está a data de publicação da reportagem. espero que não esteja mais assim mesmo. obrigado pelo comentário. mesmo assim eu assisti o jogo em 2009!

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